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O despertar para um sonho

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O celular a desperta uma hora antes do previsto. Mas não como um simples despertador e sim pela sua ansiedade de saber quais as novidades em suas redes sociais. Olívia acorda para fazer xixi, ao abrir os olhos a primeira coisa que seu consciente lhe diz é para ver o celular. Enquanto confere quantas curtidas recebeu, seu sono se esvai e ela passa o resto do dia cansada.

Ela trabalha num escritório de advocacia há três anos como secretária, mas queria mesmo ser pianista. Sua vó lhe ensinou a tocar desde muito pequena, mas ela não conseguiu se sustentar de música. Olívia vive cansada e insatisfeita com o jeito que gasta dez horas diárias de sua vida. Afinal, são oito horas de trabalho e mais uma hora pra ir e outra pra voltar quando o trânsito ajuda. O escritório é longe. Três baldeações de metrô e depois dois ônibus para cada trecho, ao todo dez transportes por dia só para trabalhar. A região onde fica o escritório é muito cara para se viver e seu entorno também. Os avós de Olívia moravam por lá, mas desde a geração dos seus pais para quem não tem muito dinheiro ficou impossível fazer parte da cidade, a única coisa que lhes restou foi ir para a periferia e ter o mínimo de acesso possível.

Ultimamente seu hobby tem sido sonhar. Olívia descobriu que a única hora que não se sente explorada ou sugada é durante seu sono. Ela correu atrás de alguns livros sobre o assunto. Um deles fala sobre um cara que aprende a sonhar com um sábio índio espiritualista. Ele afirma que existem universos paralelos no mundo do sonhar que também são reais e podem até influenciar nessa realidade.

Olívia lia antes de dormir com algumas interrupções para a checagem no celular se suas fotos e mensagens dos amigos e parentes tinham tido boa aceitação. Na vida prática, Olívia tinha duas amigas, uma desde a infância e outra que conhecera no trabalho, mas nas redes sociais tinha literalmente mais de mil amigos, a maioria nunca conheceu pessoalmente. Apesar da popularidade virtual, Olívia se via muito cansada de tudo. Sentia que a cada dia abdicava mais dos seus desejos e vivia sendo levada pelas obrigações. A falta de dinheiro, o trabalho maçante, a necessidade de compartilhar suas fotos no facebook buscando aprovação eterna para sua aparência e seus gostos, tudo isso lhe desanimava profundamente, mas não sabia como fazer diferente. Olívia estava a espera de uma salvação que estaria em qualquer lugar menos nela.

Sobre o significado do sonho existem duas visões predominantes; uma se caracteriza como a experiência de sentir e vivenciar situações diversas durante o sono e a outra diz respeito aos desejos e metas que a pessoa tem. Olívia até agora não tinha conseguido concretizar nenhum de seus sonhos, nem o de ter tocado numa orquestra, nem o de viajar pra fora do Brasil, nem o de escrever um livro. Viveu um sonho, mas ele acabou muito rápido. Amou e foi amada, mas perdeu seu amor num acidente de carro. Ela sabia que se não mergulhasse em outra forma de viver, de sentir e tornar-se, não resistiria. A depressão é a doença do século, Olívia tinha medo de ficar deprimida, pois assistiu sua mãe definhar até a morte por ser maníaco depressiva. Desde que descobriu que pode sonhar, achou algum sentido na vida.

Ao estudar os sonhos Olívia descobriu que podia ficar consciente dentro deles e até mudar seu conteúdo de acordo com sua força energética. Ela quer muito conseguir fazer viagens pelos países e planetas que sonha conhecer através do que alguns chamam de “projeção astral”. Para isso ela precisa de prática e mudanças em sua percepção. Logo percebeu que querer se sentir especial de alguma forma, seja através da internet, das roupas, das mentiras que às vezes contava pra desconhecidos para os impressionar, nada disso a fazia evoluir. Ao se sentir especial, ao achar que a auto importância é primordial, ela passa a quebrar a corrente de energia que une tudo e todos e começa a subjugar o outro. Olívia percebeu então que é daí que nasce o desejo de poder. Esse desejo é o que faz bilhões de pessoas como ela serem exploradas diariamente apenas para conseguirem o básico para sobreviver, enquanto seus chefes, braços fortes da engrenagem perversa do capital engordam suas contas bancárias e bens. Quando pensava demais em tudo isso, se sentia cada vez mais sem saída e sozinha. Na verdade sabia que a maioria da população mundial vive em situação muito mais precária que a sua. Por isso, se sentia mais sozinha, já que estão todos no mesmo barco e a maioria não se dá conta ou não sabe como escapar dessa prisão. A multidão solitária está cada vez mais neurótica e infeliz, sentia um arrepio frio e ácido no peito ao se dar conta disso tão claramente.

         E que solidão é essa para quem tem mil amigos na internet? Ficava mais tranquila quando postava um pensamento que as pessoas gostavam ou uma imagem que atingisse muitos comentários. Mas quem são essas pessoas do outro lado? O que é revelado delas nessa exposição desenfreada de tudo que se quer que o outro saiba? Por vezes, se sentia ridícula de fazer parte disso. Como fazer parte de uma rede onde muito se fala e nada se vê? Como achar caminhos para mudar o rumo da vida de todas essas pessoas, incluindo o dela mesma? Um caminho que aponte não apenas para a auto importância, mas para a noção de que precisamos todos uns dos outros e que todos somos importantes. É tão difícil que essa concepção caiba numa realidade que separa por metros pessoas em situação de rua comendo os lixos que os magnatas que moram nos apartamentos de 500m² produzem…

Olívia respirou fundo seguidas vezes até pegar no sono, aprendeu essa técnica em um livro, sua aventura começava naquele instante. Ela estava no meio da rua na Time Square em Nova Iorque, tal e qual via na internet. O relógio corria mais rápido que o normal e os carros começaram a passar por ela apressados, tinha que desviar de todos eles até que sua consciência despertou. Lembrou que estava sonhando e que poderia sair dali se usasse sua concentração e energia para isso. Então, fechou os olhos e quando os abriu estava em outra cidade, uma cidade que só parecia existir ali naquele mundo. Já sabia que os seres que via por lá eram pessoas, mas elas tinham formas e cores estranhas e seus rostos não eram nítidos. Olívia já esteve naquela cidade antes, mas não conseguia lembrar em qual circunstância. Ao caminhar pela bonita paisagem do lugar, viu plantas e animais exuberantes, diferentes dos que veria por aqui. As casas seguiam uma ordem de degrade de cores. De um lado o degrade de cores frias e do outro um degrade de cores quentes. De repente aquele cenário começou a se esvair como uma fumaça e quando se deu conta, estava no fundo do oceano, com correntes presas em seus pés. Tentava se soltar em vão, ar não lhe faltava, mas a agonia de não conseguir se soltar era imensa. Até que lembrou que se usasse sua concentração poderia sair dali, mas diante de tanta tensão preferiu tentar acordar até que conseguiu.

Olívia saltou da cama como se finalmente tivesse tirado aquela amarra dos seus tornozelos. Sua respiração ainda estava ofegante quando olhou para o relógio e viu que estava uma hora atrasada para o trabalho. Entrou em pânico porque tinha que acompanhar uma reunião importante de um dos advogados da empresa. Mas somente uma hora e meia depois chegou ao escritório. A reunião já havia acabado e ela foi demitida por tê-la perdido. Nunca havia cometido um deslize, seu atraso máximo foi de quinze minutos e nada disso foi levado em consideração, mas para ela também não importava, pois o desespero tomou conta da sua mente; como iria sobreviver daquele minuto para frente? Andava errante e perdida pelas esquinas luxuosas da cidade, aquele lugar não precisava dela, existiam milhares de pessoas dispostas a fazer o que fazia por até mais barato. Parecia que todos eram zumbis engravatados, com olhares distantes como o dela. Foi então que parou, pôs seus pertences no chão da calçada e sentou-se ao lado. Procurou apenas respirar. Alguns transeuntes perguntaram se estava bem, apenas acenava que sim com a cabeça, voltava a fechar os olhos e respirar fundo ininterruptamente. Não sabe por quanto tempo ficou assim, mas em algum momento despertou, levantou-se mais calma, pegou suas coisas e foi para casa.

Nem queria olhar o facebook hoje, estava triste demais para encarar a felicidade plástica daquela rede. Nada parecia fazer sentido a não ser o preço da sobrevivência. Não sabia a quem recorrer, por onde começar a procurar, tinha pouca experiência na vida, tinha apenas 27 anos e ninguém para lhe ajudar. Porém, ao chegar em casa todo o sentimento de peso e preocupação deram lugar a um imenso alívio. Era como se as amarras que lhe fincavam no fundo do mar no sonho tivessem a libertado no mundo real. Não tinha mais que ir para aquele lugar que detestava, lidar com assuntos que não lhe diziam respeito. Sentiu-se tão livre que começou a gritar de alegria. Não fazia ideia do que ia acontecer, mas de uma coisa tinha certeza; abriu-se uma oportunidade de, finalmente, seguir seus desejos. Então percebeu que sempre tivera essa oportunidade, o que lhe faltava era coragem de enfrentar o medo do mistério que é a existência; imprevisível e deliciosa ao mesmo tempo justamente pelas suas infinitas possibilidades. Ela seguiu sua jornada de atravessar portais dos sonhos e da realidade, mas dessa vez guiada pelo amor e por um enorme desejo de mudança. Subiu no parapeito da casa mais alta e vermelha daquela cidade que visitava em seus sonhos, as pessoas estranhas lhe chamavam para baixo, pareciam felizes em vê-la. Sorria plena. O céu era um infinito de cores lindas que tinham formas diferentes… Era impossível não ficar encantada. Olívia abriu os braços e se jogou. Finalmente conseguiu voar!

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O sobrevoar de uma vida entre universos paralelos

     Quando Heloísa deixou sua casa naquela manhã de domingo não imaginava o que também estaria deixando para trás. Não pretendia nada mais que uma caminhada naquele dia ensolarado. Acordara com os raios de sol discretamente expostos no teto como as linhas de Nazca vistas do alto. Sorriu ao despertar, sentia-se plena e cheia de energia. Deu bom dia ao seu irmão mais velho que dividia apartamento com ela, vestiu-se e foi andar pela rua no pretexto de tomar um suco.

      Fazia calor em São Paulo e Heloísa andava confortavelmente pela calçada até que avistou Rezon na bancada da lanchonete que estava indo comprar o suco. O rapaz era filho de judeus refugiados da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, muito bonito e cordial. Heloísa sentiu um palpitar estranho no peito ao deparar-se com Rezon que não chamava a atenção dela apenas pelo tipo físico, já havia conhecido muitos rapazes bonitos, mas aquele tinha algo em seu espírito que de alguma forma precisava se conectar com o dela. De repente, Heloísa sentiu um tremor e formigamento nas mãos tamanho que não pensou em outra coisa a não ser voltar pra casa em passos de fugitivo. Ela podia tentar, mas o acaso não a deixaria escapar de viver uma história de amor com Rezon.

       No dia seguinte ao que o conheceu, Heloísa se deparou com o rapaz na sua classe da faculdade, daí a eles se aproximarem foi apenas questão de dias e, mesmo com as diferenças culturais, os pais de Rezon se sentiam muito grato aos brasileiros por terem os acolhido bem, por isso, não faziam vista grossa ao namoro dos dois, mesmo no fundo preferindo que Rezon se relacionasse com uma mulher judia em função das leis da Torá. Heloísa e Rezon namoraram por quatro anos e ao concluírem a faculdade decidiram morar juntos. Era impressionante aos olhos de todos como os dois se davam bem e se amavam verdadeiramente. Era um casal que brilhava quando estava unido, parecia que um exaltava o melhor do outro numa simbiose fantástica. Foi uma união de muita felicidade e troca, até o dia em que Rezon e Heloísa estavam tomando um suco na mesma lanchonete que ela havia o visto anos atrás pela primeira vez. No momento em que ela foi ao banheiro ouviu um estrondo e gritos, ao virar-se de costas viu um carro que esmagava Rezon contra o balcão da lanchonete matando-o na hora.

       A partir daquele dia Heloísa começou a ouvir estranhas vozes que variavam entre o que parecia uma senhora de idade que lhe dava sermões o tempo todo e outras desconexas que não paravam de sussurrar-lhe frases ininteligíveis. Heloísa acabou sendo submetida a um tratamento psiquiátrico, muito pouco convencional pra época, com um psiquiatra que estava experimentando investigar a loucura não só por meio de psicoterapias ou pela investigação psiquiátrica convencional, ele queria descobrir causas espirituais para os transtornos psíquicos de seus pacientes.

     Heloísa não se tornou uma psicótica agressiva, ficava muito mais em seu mundo, introspectiva e de poucas palavras. Suas crises estavam instaladas quando ela saia andando por aí, parava, olhava para o que parecia o nada e fazia gestos suaves com a mão, como uma mímica, sempre na menção de expulsar alguma coisa que estava lhe falando ou aparecendo. Ela não chegava a ficar nervosa, espernear ou gritar, o problema é que muitas vezes se perdia andando a ermo e a equipe terapêutica passava horas, às vezes, dias procurando-a pelos arredores do sítio onde ficava instalada a base do médico e sua equipe.

    Após um ano de tratamento, os chamados “sensitivos” foram juntando minúcias e descobriram, através de hipnose e regressão, o que parecia ser uma explicação para a voz da senhora idosa que aturdia os ouvidos de Heloísa. Em outra vida, ela teria sido a avó do espírito de Rezon que era uma menina que morreu aos nove anos ao cair de uma carroça de cavalo que a mãe guiava rebeldemente após uma briga com a avó de Rezon. A mãe era Heloísa que na outra vida nunca se perdoou por ter guiado imprudentemente a carroça causando a morte de sua filha.

      Com isso em mãos, a equipe do psiquiatra inventivo tentava muitas vezes tratar diretamente com a vó do espírito de Rezon para que deixasse Heloísa em paz nessa vida que ela já havia sofrido muito e continuava sofrendo com o cumprimento do seu carma. Heloísa teve significativo progresso nesse tempo e resolveu voltar pra casa dos seus pais. Após alguns meses, mostrando plena melhora, sentiu que precisava buscar mais respostas do mundo espiritual e mudou-se para uma aldeia de índios no interior. Lá experimentou diversos rituais com ayahuasca, sempre na busca de acertar suas contas por si mesma com o seu passado espiritual.

       Já haviam se passado dois anos que Heloísa estava morando com os índios até que numa madrugada, após uma forte pajelança, ela foi dormir e sonhar. O sonhar que havia aprendido com os índios era diferente do simples emergir do subconsciente, havia aprendido a atravessar os portais do sonho e, através dele, visitar outros universos paralelos, até mesmo, quem sabe, os mesmos que as perturbavam quando ela estava em “surto psicótico”. A Guerreira, como sugere o significado do seu nome, foi fundo demais ao atravessar os portais dos sonhos e ao deparar-se com uma dimensão que a libertou de todo o seu passado, resolveu ficar por lá e não acordou mais. Sua matéria virou uma luminosa partícula que foi desprendida à imensidão do universo; do real e dos paralelos.

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A força do verdadeiro

Desse lado é a voz de quem vive que fala mais alto. Diante de seus ternos e cartões de visita há uma plebéia que não agüenta sentir seu cheiro de perfume caro misturado com sebo de alma. Só conseguia sentir nojo daqueles lobistas bilionários proferindo aos sete ventos que eram a “elite pensante do Brasil”. Tá pra nascer elite mais ignorante! O povo, mesmo sem acesso a digna educação, está muito mais ciente do caos coletivo do que aqueles que ainda herdam um sobrenome ou uma grande empresa.

É quase uma prostituição ter que trabalhar num ambiente em que as pessoas te olham de cara feia, apenas porque você está transitando entre as mesas deles. Minha sorte foi que, passado esse pesadelo de perder algum tempo de vida junto a grandes empresários (que no fim se misturam a mim, já que estávamos todos lá por dinheiro), eis que sinto vida de verdade.

Ágata, 28 anos e muita história. Sentada na “cadeira da verdade” contou que seu irmão a levou pra zona, falando que lá ela ganharia dinheiro de fato. Ele já estava na vida há algum tempo e ela de cara curtiu. Ágata possui uma imponência ao falar que ninguém duvidou do seu amor à profissão. O agito, a noite, as possibilidades, inclusive, de uma vida mais rentável se tornaram sua paixão. A boate estava vazia, não havia trabalho para aquela noite, portanto, ela pôde contar sua trajetória sem nenhum incomodo. Já foi casada, já teve homens aos seus pés. Mas não conseguiu largar da vida pra vida normal. Amélia? Dona de casa? Sem movimento no universo? Jamais. Um belo dia chegou em casa de manhã, o marido esperando. Onde você estava? Na zona, não agüento mais. E foi o seu grito de adeus, sua alforria para uma vida que muitos consideram prisão. Pra ela é liberdade. Sim, liberdade! Pros que vivem a margem não há julgamentos. Há apenas existência, diversão e sobrevivência. Foi por essas três coisas que Ágata resolveu voltar pra zona e é feliz até hoje.

Já a Jessica, com uns 30, tem quatro filhos, é puta e os cria com muito amor. Agradece a deus por não lembrar do rosto do sujeito que é pai da sua filha mais nova. Tava doidona e não lembra, a filha é só sua, assim como seu corpo. Ela conta que os filhos salvaram sua vida, são a sua motivação. Trabalha ali profissionalmente, já que o que gosta mesmo é de mulheres. Fala da sua namorada com ternura, em meio à uma retrospectiva de clientes.

A doce e meiga Rúbia parecia uma garota de 17 anos, com RG de 35. Muito sensível e de bom coração, desistiu de descer da áreazinha aberta onde estávamos para ver se havia clientes e ficou conosco a noite inteira. Contou de suas filhas, que de um acidente do acaso, viraram suas grandes paixões. A idade varia pouca coisa, mas o amor é imenso. Uma doçura sagaz, intensa e verdadeira a da Rúbia.

Foi um fim de noite muitíssimo agradável ao lado de todas essas mulheres de verdade. Conhecemos as outras garotas e todas se sentiram muito a vontade pra dividir suas histórias, tristezas e alegrias conosco, mesmo que por poucas horas. A empatia foi tanta que uma de nossas amigas estava fazendo aniversário e, no meio de um papo astrológico, assim que elas souberam puxaram um parabéns que tenho certeza que nenhum de nós vai esquecer.

Posso dizer que nesse dia fui salva. Salva pela simplicidade, força e beleza dessas mulheres. Ao contrário dos pingüins de terno que tive de agüentar horas antes, pude cruzar com olhos que gritam “intensidade” o tempo inteiro. Abençoadas sejam as putas.

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Incógnita

Sobre uma breve e nova paixão o que tenho que dizer? Sobre acordar depois de um sonho num paraíso indescritível ao lado de você mesmo. Acordar, olhar para as paredes, ver que tudo continua ali escrito, olhar para o lado e ver que o celular continua com muitos alertas. Olhar para o travesseiro e ver a possibilidade de um resgate.

Ao mesmo tempo em que tomo banho, olho pela janela a vastidão do mar que parece se mexer. Daí percebo que toda a casa está se movendo junto.  Fecho os olhos e imagino uma chegada linda, me percebo perto de tudo aquilo que me faz florescer.  Até que estaciono.

Cortinas de plantas se formam diante do rio imenso que surge ao lado do mar e de todas as criaturas multi coloridas que despontam desse devaneio.  Pensei em viajar, escrever, sentir algo… Como o que sugerem de fulgás. O negócio é que venho sentindo demais, tenho sonhado demais, venho vivido pouco. E no sonho tudo é esplendor. Eu não tinha que doer porque eu não escrevia. Se fugir da dor é simplesmente não ouvir o amor estou a salvo. Tudo se move, mesmo o que não parece fluído vira. E o que tem que doer, dói. E o que tem que fluir…Flui.

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O espelho e o tornar-se

Talvez seja a hora de vomitar um novo mundo. Obviamente, você mesma não sabe do que se trata. A maioria das vezes vem como um lampejo de vida. É mágico não pensar, mesmo  ao que mais te exige uma história. Mas de um jeito ou de outro, Sally vai nascendo e, com ela, todos os outros personagens.

Ouço uma música que não entendo, ouço vozes que não conheço, me torno borboleta. Me torno vida, me torno escrita, me torno prazer.  E tudo mais que não se pode mensurar. Meus dedos correm suave e densamente no que me torno e no que escrevo. A metalinguagem sempre foi uma de suas maiores marcas, Sally.

Sally se vê num balanço de um parque. Seus dedos se contraem contra as correntes metálicas que sustentam o pneu pintado de vermelho. Os ares leves de inocência e magnitude desenham em seu rosto um largo sorriso. Sally ainda não descobriu o por que de sua visão. Ela mal sabe se realmente está lá ou se está sonhando.

O que será que Sally está fazendo?  Quem é Sally ao se ver no espelho? Ao mesmo tempo em que ela vê o seu reflexo, ela percebe que está sendo vista. Pelo que seria o reflexo do espelho?  Pelo que seria Sally de frente para algo? Sally pensa em atravessar o espelho. Ela não se vê reflexo. E, de repente, Sally se vê dentro de uma sala repleta de espelhos. Ensaia movimentos tímidos com a cabeça, em seguida levanta uma perna devagar. Enxerga o que nunca viu antes, fecha e abre os olhos lentamente, abaixa a perna no mesmo ritmo e então, ela resolve se aproximar. Do espelho. Ela o toca com a mão esquerda que lhe parece direita. Pisca os olhos, como se tomada por um torpor de inquietude, eles se reviram por completo. É impassível de interpretação o que ela sente agora. É apenas sentimento. Ela olha fundo em seus próprios olhos, refletidos em tantos lugares. Sua alma parece percorrer todos… os lugares. Ela está tomada de si, ela está tomada de vida, ela é só intensidade.

Sally, você superou suas próprias marcas? E todo aquele sofrimento que lhe tomou por tantos anos? Por que está de volta, Sally? “Dear Sally, this is not the way…” Sally encontrou a vida que achava que tinha perdido, ela sempre esteve aqui. Assim como o seu reflexo. Numa ordem disjuntiva, numa não-ordem. Eis que ela ressurge de todo tipo de penhasco. Sally está de volta. E cheia de vida. Ela reluz e. Brilha.

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Bandeira Branca

 

Na porta do quarto esperava. O corredor estava aglomerado, a fila de homens aumentava escada abaixo. Ela olhava para o teto, no momento em que ele surgiu. Eles entraram no quarto, ela fez o de sempre. Era o último da noite. Ela foi tomar banho, de fora ouvia Bandeira Branca tocando. Ficou muito entusiasmada, era hora da diversão. Voltou ao quarto e fez de si uma mulher deslumbrante. Vestido justo preto, desenhando suas belas formas, batom vermelho que ressaltavam seus lábios desenhados, salto alto e um belo sorriso marcado no espelho.

A escola de samba estava tinindo. Ela cumprimentou seus vários conhecidos e sentou numa mesa sozinha, pois fazia questão de tomar sua cerveja sentada e antes de qualquer coisa. O garçom a serviu e ela tomou o primeiro gole. Era muito gostoso observar os presentes e apreciar sua cerveja. Olhava atentamente para as pessoas. A maioria estava eufórica, dançando sem se importar com o amanhã. Ela tomava sua cerveja e sorria ao ver toda aquela gente curtindo. Resolveu escrever um pouco, apreciava a solidão alcoólica junto a uma mini criação literária. Pegou um guardanapo, uma caneta na bolsa e fez um ponto no papel branco. O inicio era sempre o mais difícil. Ao pensar isso, riu consigo, pois na vida o inicio é o mais fácil, o meio e os fins que são sempre dolorosos. Apesar disso, conseguiu esboçar a 1ª linha de sua prosa. Era isso, começa-se sem saber o meio ou o fim, é isso que torna espontâneo.

Quando já estava lá pelo 3º parágrafo e sem ter uma história ao certo veio uma vontade incontrolável de fazer xixi. Já tinha bebido uma garrafa e meia. Pra não perder a mesa, ela pediu para que um rapaz do bar, seu conhecido, olhasse pra ela enquanto ela ia ao banheiro. Foi correndo até lá, o bendito já estava pra sair. Não tinha ninguém, ela entrou de uma vez, mal abaixou a meia calça e a calcinha e o jato já se formou. Sensação de alivio completa, apesar da posição malabarista não ser nem um pouco confortável. De cócoras em cima da privada, a bolsa numa mão e com a outra segurava a fechadura do banheiro que não fechava. Um dilúvio se fazia por entre suas pernas, intermináveis aqueles 500 ml de cerveja. Contava os quadrados do azulejo da parede azul a sua frente, até que olhou pro chão e viu uma caixinha de música bem ao lado da lixeira e de uns poucos papeis caídos. Xiiiiiiii. Xixi interminável. E a caixinha de musica atraiu totalmente sua atenção. Finalmente terminado o fluxo aparentemente incessante de urina, ela foi direto na caixa de música. Abriu sem nenhuma esperança que funcionasse e realmente não funcionou. Musica não tocou, mas lá dentro estava a bailarina rodando e a frase “Tudo está cheio até a borda” escrita no pequeno espelho da caixinha.

Ela voltou para a mesa com a caixinha. A frase, obviamente, não saia da sua cabeça. Sim, até ela estava cheia até a borda, e o pior era não conseguir esvaziar-se num texto, no samba que estava ou mesmo em sua profissão. Mas isso não era o mais importante… Mas quem teria deixado aquela caixa ali? E por que a frase? Rapidamente veio a cena na sua cabeça. Um cliente apaixonado por uma prostituta tentou com que ela virasse uma mãe de família, cristã e moralista, mas ela recusou-se e esse foi o presente dele para ela que o jogou fora no primeiro lixo de banheiro que achou. Riu alto com sua estória fantástica, mas pensou que era uma boa trama para o conto que nunca lhe saia. Amassou as duas folhas de guardanapo nas quais tinha escrito nada com nada, pegou uma nova e escreveu uma palavra, até que uma colega sua chegou aflita. Amiga, o Tonhão ta atrás de mim. Tem duas diárias que não dou a ele, desafiei mesmo… Ele disse que vai me matar. A primeira palavra do guardanapo foi “amor”. Ela olhou firme para a amiga e disse; fica aqui, nada vai te acontecer, esses exploradores de merda não tem mais direitos, você falou com a Tatinha? A amiga disse que sim e que ela não podia fazer nada, porque ele que cuidava da milícia quando ela aparecia querendo fechar a zona. Ela já sabia disso, só citou a cafetina pra tentar acalmar a amiga. Viu aqueles olhos esbugalhados diante de si e, ao mesmo tempo, olhou para o lado e viu o Jeferson, seu velho conhecido, policial.

Ela se levantou e o cumprimentou. Sua amiga ficou estática olhando para os dois, já tinha entendido o que ela pretendia. Estava combinado, Tata pagaria uma porcentagem do seu trabalho em troca da proteção do Jeferson e logo o gigolô não ia mais incomodá-la. Ela falou para a amiga relaxar e puxou os dois para dançar, não era mesmo hora de escrever. Em meio a muito samba e suor, Tata conversou com Jeferson e eles se acertaram. Ela ficou feliz em proteger a amiga e viu que aquela era a hora de se deixar levar pela música. Afinal, aquele foi um dia exaustivo de trabalho e sem um conto produzido. Jeferson migrou para o grupo dos colegas e ela e Tatá sambaram como loucas. Alguns homens as paqueravam, mas ela se sentia cansada demais pra dar bola pra algum deles e Tatá nem os via. A bateria da escola pulsava em cada um dos corações presentes, e ela sorria extasiada. Foi quando ouviu o barulho de um tiro. Olhou em sua volta, nem todo mundo tinha ouvido, nem ela tinha certeza se fora realmente um tiro. Até que olhou para sua amiga, no mesmo momento em que ouviu o segundo tiro. Tatá caiu no chão ensangüentada. Ela caiu por cima do corpo da amiga de desespero, gritava sem parar, a musica ainda não tinha parado. Depois do terceiro disparo a escola em peso entrou em pânico. Algumas pessoas corriam, outras se abaixavam. Jeferson foi correndo até as meninas, até ser atingido pelo quarto tiro. Ele caiu com a cabeça por cima da barriga de Tata. Tonhão se aproximou dos três, suando como um porco e gritando que não tinha medo de nada, não tinha medo de ninguém. A multidão gritava apavorada, Tonhão deu mais um tiro pra cima e mandou todo mundo calar a boca. Ele apontou a arma para ela, seus olhos se esbulharam; Não faz isso, Tonhão. Relaxa, cara, eu não te fiz nada. As palavras dela soaram como agulhas em seus ouvidos, ele puxou o gatilho e atirou na perna dela que caiu por cima de Tatá ensangüentada. Vai proteger sua amiguinha vai, agora tu e ela se foderam! Tonhão se aproximou, sentou de joelhos ao seu lado e sussurrou no ouvido dela: Seu desejo não é maior que o meu. Logo em seguida, levantou-se e quando apontou a arma para a cabeça dela sentiu uma bala perfurando sua coluna vertebral e caiu no chão. Era a policia. Ela não sabia se sentia alivio por não ter morrido ou se sentia mais medo da reação dos PMs ao verem que um dos seus foi assassinado.

Ela recorda desse dia como um triste e sangrento transbordar, sem bailarinas ou caixinhas de música.

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Uma nova maneira de pensar

By Rob Gonsalves

Tantas coisas correm pelo meu espírito que mal posso conceber um início. Mas é disso mesmo que se trata; uma nova maneira de pensar.

Vive-se tão preso na interioridade e na necessidade extrema de admitir um sujeito, que Deleuze foi obrigado a nos dizer está tudo errado, o real é o pensamento do fora. É daí que começa a angustia, como podemos pensar em alguma coisa que não inclua um sujeito? Pois ele insiste; não existe um sujeito, existem peças, o homem é mais uma delas. É então que surge uma tríplice aliança: o homem, o cavalo e o estribo. O homem-homem, o cavalo-animal e o estribo-objeto, três categorias diferentes, portanto, heterogêneas. Ao juntar-se, funcionarão para a formação do cavaleiro estribado. A isso dá o nome de agenciamento. Nesse agenciamento específico, cada elemento funciona como uma peça, portanto, não existe sujeito, mas sim, peças. Peças heterogêneas que se juntam não espontaneamente e co-funcionam formando um agenciamento. Então surge a questão: se não há sujeito, o que causa o agenciamento? Essa é a grande dificuldade da maioria das pessoas de compreenderem Deleuze. É muito difícil admitir que o homem não é o centro. O centro é o desejo. Portanto, toda aquela história de interioridade e interpretação não passam de mera ficção. O sujeito é uma ficção. O desejo é real. Alguém vai perguntar: mas de onde parte o desejo? O desejo não parte de lugar algum, ele não depende de sujeito ou objeto. Tudo é desejo. Só ele é real e, ao mesmo tempo, abstrato. Não tem figura, ele pode devir qualquer coisa. Mas nós não estamos acostumados a lidar diretamente com os desejos. Pra isso criaram uma máquina psicanalítica que troca o desejo (ou real) pelas interpretações. É a interpretose, ou doença do desejo.

E, por que, a interpretose é tão nociva ao espírito? Oras, a ficção que nos contaminou é a de que tudo está no sujeito. Mas como partir de representações do seu interior se esse sujeito não existe? Não seria mais inteligente, enxergar os agenciamentos e procurar se livrar dos que não prestam? É partindo desse ponto, jogando as interpretações no lixo e perguntando-se para que aquilo serve que se promove uma mudança real. Para que continuar num trabalho que você se diz infeliz? Para que continuar uma relação amorosa que não lhe trás alegrias? Para que morar numa casa que você detesta? Isso não tem nada a ver com necessidade, o que existem são desejos. Você DESEJA mudar? Você DESEJA se livrar dos agenciamentos que diminuem sua potência? Você DESEJA viver com intensidade? Pois vamos produzir novos desejos! Façamos de nossa máquina corpórea uma fábrica de desejos, desejos de mudança, desejos de rompimentos, desejos reais. Essa é a verdadeira revolução. E o que existe são apenas revolucionários ou reacionários. Os revolucionários criam, inovam, experimentam. O medo não quer dizer nada para eles. Eles não tentam melhorar a máquina do capitalismo, eles querem destruí-la. A revolução é ser forte, é se jogar rumo ao novo; é romper com tudo que ameaça-nos como potências. Os reacionários não conseguem buscar a liberdade. Ficam presos numa interioridade ilusória, mascaram suas vidas com os moldes da máquina do capital. São viciados no medo, na culpa, na resignação.  Deixam seus desejos adoecerem. Chamam de inconsciente e desejo toda essa gama de repressão que carregam na suas construções de sujeito. O inconsciente para o pensamento moderno nada tem a ver com isso, ele não precisa ser interpretado, e sim, produzido, naturalmente. A natureza é uma grande produção.

Eu diria que a maior parte de nós está doente. Doente de um mundo imaginário que insistem em nos dizer que é real. Doente de prostração, adaptação e conformismo. Doente de medo. A mim, cabe a tarefa de tentar promover o mínimo de compreensão a mim mesma e aos que me lêem. Enxergar essa doença não deve nos entristecer ou nos fazer padecer ao terror. A compreensão dessa realidade será uma injeção de partículas de vida co-funcionando nos nossos espíritos. Experimente.

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O eu além da janela

By Audrey Kawasaki

Ela simplesmente despertou. A janela estava completamente aberta e os raios de um sol promissor tocavam-lhe as pernas. Ela sentiu ainda mais calor ao ver-se entrelaçada a ele. Ao mesmo tempo em que sentia a agonia da alta temperatura, sorria ao ver-se enlaçada com seu amor. Ela desencaixou as pernas das dele vagarosamente e levantou-se.

O sol brilhava além da janela. Não sabia se sorria ou se mal dizia àquele lindo dia. Por um segundo sentiu-se apática. Tudo poderia ser tão vivo, mas não sentia nada. Resolveu fazer um café para acompanhar seu primeiro cigarro matinal. O primeiro gole lhe fez pensar no quanto o líquido é eficaz. Não importa se as portas forem fechadas para sua passagem, ele simplesmente passa. Ela riu ao perceber seu pensamento infantil.

Quando ele acordou, ela estava no banho. Olhou para a claridade que lhe incomodava, protegeu-se com as mãos e alcançou a cortina para fechá-la. Um longo bocejo até ir a cozinha servir-se de café. Enquanto saboreava o líquido negro, pegou a caixa de medicamentos na prateleira. Tomou o comprimido de Leponex com água. Ela fluía com uma força incrível de seus dentes até sua garganta.

Vestia-se à medida em que se sentia estranha. Seus músculos pareciam dar pequenas fisgadas e sua sensação era de uma dormência por todo corpo. Uma voz lhe soava doce no ouvido “você vai se machucar”. Ela fechava os olhos e cantarolava qualquer coisa para se livrar do que ouvia. De repente, a voz sumiu e ela foi ao encontro dele que preparou torradas frescas. Ela falou sobre o calor. Ele profetizou sobre o dia; “será um dia difícil”.

De fora da janela, um espanhol andarilho vendia seu artesanato feito com folha de bananeira. Parou diante de um jovem distraído no ponto de ônibus e pediu para que ele visse suas criações. O rapaz tirou os fones de ouvido e disse-lhe que já conhecia o seu trabalho, mas só estava com o dinheiro do ônibus. O vendedor continuou a dar seus preços e disse não se lembrar do rapaz. Ele insistiu que o conheceu na frente de um bar próximo, elogiou seu artesanato e novamente falou sobre a falta de dinheiro. O espanhol finalmente lhe perguntou se ele tinha, pelo menos, uma moeda. O rapaz apalpou os bolsos da calça e achou 75 centavos. Entregou-lhe. “Desculpe, é tudo que tenho a mais”. Foi então que o artesão lhe falou para escolher qualquer peça do seu trabalho. O jovem ficou encabulado, disse que não precisava, ele fez questão e o moço escolheu um pequeno enfeite que, na sua cabeça, formava uma tartaruga. Os dois agradeceram emocionados e se perderam no mundo. Antes disso, o jovem lhe deu mais 5 centavos que achara no seu bolso numa segunda busca desesperada.

Ela gritava, chamava-o de monstro, de escroto. Ela pegou o elevador e desceu a rua em direção ao centro de tratamento dos dois. Aquela era a sua segunda casa, mesmo guardando certo rancor da instituição e de seus profissionais, aquele era o seu segundo refúgio. O rancor não era proveniente da forma que era tratada, mas da imagem sólida de seus medos e fraquezas que ali ficavam projetadas. Anos e anos de tormento e solidão, numa história que, mesmo compartilhada, era só sua. Isso era mais que o bastante para doer, para fazer gritar. Ele correu aflito atrás dela, sabia o tamanho do seu sofrimento que, naquele momento, conflitava diretamente com o seu. Frases inteligíveis tilintavam em seus ouvidos, ele as ignorava.

Ela chegou completamente perdida. As imagens em sua volta eram rabiscos compostos de tantas cores que lhe corroíam a alma. Não podia suportar tanta dor. Gritava! Berrava! Contava seu sofrimento através de seus olhos desesperados. Os profissionais se alarmavam, foram para junto dela, queriam ouvi-la. Naquele momento ela os via como traidores. Cúmplices daquele que julgava um canalha. Eles estavam de acordo com tudo que a perseguia, do seu marido aos soldados nazistas. O barulho dos coturnos marchando a incomodava crescentemente. Olhava ao seu redor em desespero. Como ninguém podia ouvi-los? Como ninguém a ajudava a se esconder desse terror de farda que ameaçava-lhe matar? A única arma que tinha era sua voz. Ele, finalmente, chegou até ela e a pediu desculpas, pediu que voltassem para casa. Os olhos dela não podiam acreditar ao vê-lo. Por que a expulsara de casa apenas com a roupa do corpo? Por que mostrava quase nenhum amor? Por que sempre tinha que surtar ao brigar com ele? Nada disso veio na sua mente, apenas no seu corpo. Ela continuava vendo soldados, agora os milicos da ditadura. Ouvia, novamente, seus coturnos explodirem contra o chão. Olhava nos olhos dele e via sua face derretendo em puro terror. Ninguém pôde ajudá-la. Ele tentava recuperar os olhos dela. Ela gritava. Não via mais nada. As vozes se apossaram do seu corpo. O grito era a forma mais terna para externar toda sua angústia. Ninguém tinha dimensão do que se passava. Os estagiários anotavam em seus cadernos as reações e o que achavam significativo para compor seu diagnóstico. Os profissionais “responsáveis’ tentavam acalmá-la segundo as cartilhas psicanalíticas os ensinara. Seus métodos eram em vão, não haviam aprendido nada. Não haviam aprendido a viver sem regras, tudo não passava de uma interpretação. Prontuário: Mais uma crise devido à briga conjugal.

Suas lágrimas eram como espinhos em seu corpo. Agora não podia mais tentar cortar seus pulsos, estava numa ambulância e todos a vigiavam. Depois de ter ouvido dela que ele acabara com sua vida, ele decidiu ficar lá. Não a acompanhou, “isso acentuaria sua crise”, disse alguém.

E lá estava ela, novamente na emergência após apenas quatro semanas depois da última vez. O motivo? Aparentemente ele seria o causador. Mas o pior é que não há causador. Ela não teve escolha. “Não queria ficar assim, por que eu surto?”, soltou ela da penúltima vez que nos encontramos, há pouco tempo atrás. Eu a confortava, mas não tinha a mínima idéia da resposta para sua pergunta. E hoje não fui capaz, se quer, de aproximar-me dela, pois, além de não acreditar em interpretações, ainda não posso dar-lhe uma resposta digna.

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La foule

Despertou com raios de sol iluminando sua face, refletiam o verde de seus olhos na janela entreaberta. Sua colega de quarto já havia despertado e se arrumava ansiosa diante do espelho. É hoje, Edit! A grande festa! Ela esfregou os olhos com as mãos e tentou focalizar a amiga, mas lembrou-se que estava sem óculos e sua miopia não lhe permitiria tal feito. Anda, Edit! Cadê a sua máscara? Mas de que raios está falando, Bete? Como assim do que estou falando? Hoje é o dia do baile, esqueceu?! Mas que vá pro raio que o parta este baile! Virou-se para o lado cobrindo-se por completo. Ah, não Edit. Hoje eu não vou deixar você sozinha neste quarto, nem que você queira! Anda, levanta! Tenho mais de uma máscara aqui para você escolher. Eu não quero ir a parte alguma, Bete, pelo amor de deus, entenda que… Entendo que você está magoada porque o Antonio partiu, entendo que sofres uma dor de dilacerar o estômago e é justamente por isso que sim, você vai ao baile, Edit!

Bete era virginiana e completamente diferente de Edit, mas mesmo ouvindo as reclamações da amiga não desanimava e sempre lhe convencia de fazer o que queria. Edit não saia do quarto a dois dias, nem para ligar para a família que vivia no interior do Rio de Janeiro.  Estava completamente desanimada desde que seu amor partira. Moravam na mesma cidade, mas ela sabia que nunca mais o veria. Mesmo se cruzasse com ele na rua, tudo seria tão diferente que era como se não o visse. Na verdade, foi esse medo devastador que a fez ficar no quarto por dois dias, só saindo para ir a cozinha comunitária da pensão na Tijuca.

Você não ligou para o trabalho, Edit? Não acredito! Ela fez que não com a cabeça, pegou “O imaginário” de Sartre que acabara de ser lançado e começou a ler. Bete aumentou o som do rádio que tocava entusiasmado “Aurora” e tomou o livro de Edit. Já falei que hoje você não fica aqui sozinha! Mas eu não quero sair daqui, Bete! Que raios! “Se você fosse sincera, Ô ô ô ô Aurora,Veja só que bom que era, Ô ô ô ô Aurora”. Você vai sair nem que seja carregada! Abaixa esse rádio, por favor. Ora vamos, Edit! É dia de festa, é carnaval! Já falei com o Abelardo, hoje você vai cantar! Está tudo combinado, vamos, senão irá se atrasar. O que? Você só pode ter enlouquecido de vez, Bete… Eu não vou cantar, de jeito nenhum! “Madame antes do nome, Você teria agora, Ô ô ô ô Aurora”. Mas é claro que vai! É só disso que você precisa, cantar! Mas sabes que não canto há uns dois anos, sem ensaio nem nada. É claro que não vou cantar, Bete! Pára de ser reclamona e trate de se arrumar que já estamos atrasadas!

Depois de muito discutir, Bete, mais uma vez, conseguiu com que a amiga se arrumasse e, sob muitos protestos, chegaram ao bairro da Gloria, onde o baile já acontecia ao ar livre. Edit ainda estava meio zonza, mesmo por trás da sua máscara cor de ouro, ainda sentia-se acanhada e morrendo de medo da multidão enfurecida. Vai que um daqueles rostos cobertos era o do seu amor? Como poderia ela estar segura diante de tantos olhos desconhecidos? Será que sua amiga não entendia? Bete, preciso ir embora agora. Pára de besteira, Edit! Olha, lá está o Abelardo! Vamos logo combinar a cantoria. Bete, por favor… Anda, Edit! Hoje é o seu grande dia! Você vai voltar aos palcos! Ora, mas que grande tolice, Bete, eu só concordei de vir até aqui porque você não me daria paz nunca, mas daí a cantar… Oras, que tolice! Vamos, ele acenou para nós! Oooi Abelardo!!!! Vamos, vamos, ele está nos esperando! Bete a puxou pelo braço e foi em direção ao rapaz que acenava entusiasmado. Ele tinha os olhos claros como o céu, um fino bigode que denunciava seus 27 anos e um sorriso que já havia deixado muitas moças sem ar. Abelardo as cumprimentou de forma muito cortês e simpática. Beijou a mão direita de Edit e lançou-lhe um olhar que a fez ficar sem graça. Você, minha bela diva, cantará sucessos do Trio de Ouro junto com uma banda de amigos meus que já está para chegar. As bochechas de Edit ficaram vermelhas imediatamente e, disfarçando um sorriso, perguntou-lhe por que a chamava de estrela se nunca havia a visto cantar. Aí é que você se engana, Edit da Silveira. Já ouvi a senhorita cantar e muito. Ela pasmou mais ainda quando ele pronunciou seu nome artístico. Já a vi cantar em muitos lugares e, quando não mais ouvir falar da senhorita, fiquei bastante sentido. Já alegrou muitas noites minhas, mesmo sem saber. Edit não conseguia mais disfarçar o sorriso, e apenas conseguiu dizer: obrigada. Bem, mas vamos ao que interessa, vou lhe passar o repertório, vocês devem começar a apresentação em uma hora.

O resto da banda chegou e, logo, eles foram para trás da coxia improvisada e começaram a ensaiar. Quando Edit começara a cantar todos ficaram pasmos. Abelardo já havia dito a seus amigos que ela esplêndida, mas eles nunca imaginaram que ela cantasse tão bem. Edit fechava os olhos e balançava seus bracinhos magrelos com a  suavidade de um cisne. Os olhos de Abelardo vibravam ao ver sua diva cantar. Sim, desde que a vira pela primeira vez ouviu a sinfonia dos deuses a lhe falar “é ela!”. Ele mal podia acreditar que estava ali, naquele pequeno espaço, ouvindo a mulher que acreditava ser da sua vida, cantar. Conheceram-se na Gávea, numa noite de muita bebedeira e conversas profundas. Desde então, Bete ficou muito sua amiga e os três sempre se encontravam. Abelardo, mesmo sentindo um amor infinito por Edit, era muito tímido e respeitador, portanto, não a cortejava, para que ela se sentisse a vontade. Além disso, conheceu Augusto e jamais passaria por cima dos sentimentos de sua estrela. Mas naquele momento tudo era diferente, era como se ela lhe tocasse de leve os ombros com sua voz fabulosa. Sentia o ar de seu respiro como algo novo. Não era a mesma Edit das mesas de bar. Parecia estar renascendo ao passo em que ia cantando. Abelardo via luz saindo dos movimentos de suas mãos e brilho nas ondas sonoras de sua humilde cantoria.

A hora se passou rapidamente e quando Edit deu por si, já estava em cima do pequeno palco, sendo aplaudida por dezenas de pessoas. Abriram a apresentação com “Praça Onze”. Um sucesso total. Além de Bete que gritava entusiasmada da primeira fileira, o baile havia praticamente parado para ouvir Edit cantar. Restavam poucos dançando e um número ainda menor de pessoas permanecia sentado. Os olhos de Edit brilhavam e ela mal podia lembrar-se de seu sofrimento, ou da existência de um Augusto sequer. No meio do show tirou sua máscara e ao fim foi aplaudida de forma histérica pela platéia que, a partir daquele momento a amava.

Um grupo de marchinhas havia substituído a banda de Edit, as pessoas continuavam animadas, mas nada se comparava a apresentação que teve. Fora cumprimentada pela maior parte da festa e, finalmente, pôde dançar a vontade com Bete, Abelardo e seus mais novos colegas de banda. Depois de três doses de conhaque e algumas cervejas, Edit já se sentia bastante a vontade e a dor que carregava a três horas,  parecia estar extinta por completo. Abelardo também havia bebido e, depois de muito tempo, sentiu uma segurança fora do comum. Foi o que o impulsionara a puxar Edit pelo seu braço esquerdo e dar-lhe um beijo apaixonado. A música havia acabado de parar e as pessoas aplaudiam no momento exato em que a beijara. Era como se tudo aquilo fosse pela sua coragem. Ele realizava um sonho, um sonho acordado e de olhos fechados. Edit não resistiu e entregou-se totalmente àquele momento. O barulho das palmas lhe fazia sentir ainda no palco e, por isso, seus pêlos do corpo se arrepiaram. Bete assistia a tudo e vibrava pela reação da amiga ao amor não retribuído.

O baile continuava cada vez mais animado e Abelardo e Edit permaneciam sem máscaras. Aos olhares estranhos parecia um casal de anos muito apaixonado. Olhavam-se nos olhos, andava de mãos dadas e davam os beijos mais ardentes quando pensavam que não havia ninguém lhes prestando atenção. O turbilhão de pessoas coloridas fazia-lhes mover-se de um lado para o outro. Amavam-se mais ainda à medida que eram empurrados e arrastados pela multidão. Jogavam serpentinas, lança-perfume e, por vezes, as cervejas que lhes caía do copo nos transeuntes. Edit sentia sua cabeça e coração em idas e vindas, como se estivesse num mar de seres humanos. Sorria e sentia-se muito feliz.

Já passava da uma da manhã e Abelardo foi trôpego anunciar o fim do baile no microfone. Edit que estava rente ao palco, já não tinha quase nenhuma consciência da realidade. Seu corpo era uma pluma a flutuar por entre as pessoas que a arrastavam para trás. Acabou por vomitar em seu próprio vestido. Bete, que era muito mais resistente à bebida, tratou de levar-lhe para casa.

Edit e Abelardo nunca mais se viram. E aquele romance de um baile, acabou por ser o prelúdio da música “La Foule” da eterna estrela Edith Piaf.

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O caminho de ver

O amor. As cidades. As muralhas. O que nos impede de viver. O que nos impede de viver? Construímos coisas para nos destruir. Para que inventamos os carros e os asfaltos se eles matam tantos de nós a cada instante? O amor reduzido ao carnal. Por que não amamos uns aos outros incondicionalmente? Por que queremos nos matar o tempo inteiro?

E a vida passa errante para os que se negam a enxergá-la. Mais que enxergá-la, a vê-la. Preferem se concentrar no que nos mata, no que nos fizeram acreditar que é “evolução”. Naquilo que nos envenena a cada dia. Envenena-nos em espírito, nos envenena em corpo. Envenena a vida. Mas preferimos não ver. Preferimos continuar nos entupindo de substâncias que nos fazem mal, de rotina que nos faz perder tempo, de mentiras e ilusões da existência mundana.

Vaguem pelos cemitérios, que diferença faz lá dentro o mausoléu da família Matarazzo ou da família Silva? Que diferença faz ter uma estátua de Jesus cristo esculpida pelo maior artista plástico da época diante de restos mortais devorados pelo tempo? Para onde vai tudo isso?

Não param para pensar. Não param para sentir. Não têm certeza da própria existência. Não percebem que estão muito além de uma vida, essa não é a primeira e, para a maioria, não será a última. Portanto, essas vidas não importam. Não importam aqui, esse mundo não é nada. Passagem. Somas. Evolução além do terreno. E quando morrermos, todas as nossas experiências e feitos resultarão na energia inexplicável que somos e desprendemos para o resto do infinito. A terra é uma minúscula partícula no infinito. A vida está em toda parte. A evolução é eterna e impossível de ser racionalizada. O racional também é um grão. O espírito é o infinito.

Mas elas não percebem. Não entendem a passagem. Não buscam experiências que lhes façam potentes. Se matam. Constroem casas que desabarão em suas cabeças, compram carros que serão responsáveis por seus acidentes de morte, comem carne fruto de tortura que eles mesmos envenenam em prol do dinheiro. De que mais o ser humano é capaz? Esse planeta não foi feito só para nascer e morrer. Sejam.

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